É apenas rock ‘n’ roll, mas eu gosto

Embora tenha perdido espaço como voz dissonante que questiona o status quo para outros gêneros, o rock e suas vertentes continuam sendo o ritmo predileto das marcas que buscam evocar a conexão emocional com os consumidores

Isabella Lessa

O rock adentrou o século 21 sem o som e a fúria que o consagrou décadas atrás, quando foi concebido. Os fãs de bandas mais contemporâneas podem discordar, mas, fato é que o legado do gênero, em sua quase totalidade, foi gestado entre as décadas de 1950 — a partir da fusão entre folk, blues, gospel e, principalmente,
rhythm and blues (R&B) — e 1990, que iniciou com a crueza do grunge capitaneada pelo Nirvana e terminou, igualmente com poucas firulas, com o rock de garagem de grupos como The Strokes.

Junto com a disrupção da indústria musical, com o Napster e MP3 players, como o iPod, e demais ferramentas que alteraram para sempre o consumo da música, assim como toda a lógica de funcionamento da gravação, produção e distribuição dos álbuns, veio a ascensão de gêneros que passaram a competir de forma acirrada com o rock. Tanto em termos de popularidade quanto sob os aspectos de questionamento ao establishment, de estética e lifestyle que influenciam comportamentos e hábitos de consumo. Basta observar o espaço conquistado por estilos como hip-hop, rap, funk, reggaeton, k-pop e sertanejo. Cada um deles eclipsou, de certa forma, o rock que, por si só, já havia perdido parte de seu apelo de contracultura e da soberania entre os adolescentes.

Ícone do rock, Rolling Stones foram um dos headliners da live One World: Together At Home

Mas o rock segue. Basta avançar a linha do tempo para 2020: com boa parte da população mundial em casa por causa da pandemia da Covid-19, Lady Gaga (uma das maiores artistas pop deste século e que foi muito influenciada por David Bowie) organizou, em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a live One World: Together At Home, em abril, que reuniu dezenas de artistas e bandas.

O horário nobre foi reservado para algumas estrelas do pop e do rap, como Jennifer Lopez, a própria Gaga e Pharell Williams, mas, também, deixou para o final as apresentações dos Rolling Stones e de Paul McCartney. Assim que o evento confirmou as apresentações do ex-Beatle e de seus conterrâneos, os comentários que correram pelas redes sociais eram de expectativa e empolgação, evidenciando que, sim, o rock ainda tem e merece ter espaço entre os headliners dos festivais de música — ainda que sejam eventos online e pré-gravados.

“O rock é um movimento”

Realizado pela primeira vez em 1985, o Rock in Rio é considerado o maior festival de música do mundo. Idealizado por Roberto Medina, teve oito edições no Rio de Janeiro, mas também foi exportado para Las Vegas, Lisboa e Madri. Conhecido como Cidade do Rock, o espaço criado para o evento tornou-se, além de palco para bandas, um destino propício para marcas de diversos segmentos se aproximarem do público. Para Luis Justo, CEO do Rock in Rio, o rock representa uma bandeira de diversidade — algo que também permeia a programação do festival.

Meio & Mensagem — O rock deixou de ser o único gênero que questiona o status quo. Qual é sua leitura sobre a relação das marcas com o rock através dos anos?

Luis Justo — O festival nasce após a ditadura militar. As pessoas queriam sair de casa, os jovens queriam ir para a rua expressar o que sentiam, reencontrar uns aos outros. Apesar de trazer rock no nome, o rock, na verdade, é uma bandeira, um movimento, na qual misturamos ritmos, culturas, crenças e etnias. Dentro da Cidade do Rock, todos são iguais e o sentimento de quem ali está é este. No Rock in Rio, independentemente do estilo que se ouve, as pessoas querem estar ali para viver uma experiência, ter contato uns com os outros. E isso não mudou de 1985 para cá. Hoje, vemos o público engajado e cada vez mais querendo viver uma história, para a qual temos a música como pano de fundo. Essa relação é ainda mais evidente quando esgotamos os ingressos antes mesmo de anunciarmos atrações. Por isso, o evento vem se sofisticando ao longo dos anos e buscando novas entregas não só para as marcas, mas especialmente para os visitantes que têm atrativos ao longo de 14 horas por dia. A música engaja pessoas e as une, traz alegria e felicidade. Isso é o que o público busca a todo instante. Momentos que gerem ainda mais felicidade em suas vidas.

M&M — O Rock in Rio acabou se diversificando, colocando artistas de outros gêneros como headliners. Qual é sua avaliação da presença do gênero no line-­up e nas ações das marcas atreladas ao evento?

Justo — O Rock in Rio nunca foi um festival somente de rock. Repare que desde o line-up de 1985, o festival sempre foi bem eclético, abraçando os diversos gêneros. Tivemos rock, sim. Mas também tivemos Elba Ramalho, George Benson, Ivan Lins, James Taylor, Gilberto Gil, Lulu Santos, entre outros. E ao longo das edições seguintes não foi diferente. Você encontra diferentes estilos independentemente dos palcos existentes. O line-up traz gêneros variados, que muitas vezes estão definidos pelos dias, alguns pop, outros rock, outros de metal e por aí vai. Na última edição no Brasil tivemos funk, tivemos samba, o que demonstra a descentralização dos ritmos em todos os palcos, mas também tivemos uma das noites mais heavy metal de todos os tempos que foi a primeira a esgotar. Já para as marcas, elas buscam estar no evento pelo contato com os fãs e com o público em geral, sem interferência dos gêneros, na maioria das vezes trazendo também um ecletismo musical para aqueles que optam por trazer música para seus espaços na Cidade do Rock e em suas campanhas.

M&M — Quais são as oportunidades para o rock se reinventar na comunicação das marcas?

Justo — O Rock in Rio vem se reinventando a cada edição. A cada ano trazemos novidades para quem nos visita no Brasil e nos outros países. Novos espaços, conteúdos. E isso vale para palcos com presença de artistas, como o Espaço Favela, como também para áreas como a Nave, a Game XP, que nasce no evento e ganha uma vida solo, a Gourmet Square, a Rock District, a Rock Street com seus variados temas inspirados em regiões do mundo. Tudo isso traz para as marcas inúmeras possibilidades, desde ativações que envolvem os temas, como também estamos abertos a inovações e projetos ousados, como paredes de escaladas, palcos para experimentação, apresentações de musicais etc.

M&M — Das ações de marcas relacionadas ao rock que passaram pelo festival, quais foram mais emblemáticas?

Justo — Já tivemos um espaço de marca que se transformou em um luthier de guitarras emblemáticas para visitação do público, quase como um “Museu do Rock”; espaços em que o público interage com músicos profissionais, mostrando suas habilidades de “roqueiros” para um público feito pelos próprios fãs, que têm a experiência de se tornarem rock stars. Já tivemos empresas de bebidas que transformaram suas latinhas em playlists virtuais de rock utilizando QR Codes. Além de muitas referências estéticas do rock presentes em brindes e ativações de uma imensidão de marcas. A verdade é que “Rock ‘n’ Roll never dies”!

Da rebeldia ao consumo massivo

Em sua gênese, o rock provocou impacto visual e sonoro: Little Richard precisou alterar a letra de Tutti Frutti para que o teor sexual ficasse menos óbvio e, consequentemente, comercialmente aceitável. E Elvis Presley, por sua vez, ganhou a alcunha de Elvis, The Pelvis por causa do balanço de seus quadris que não foram bem digeridos pela camada mais conservadora do público na época. Nos anos 1970 e 1980, inúmeros discos do Kiss foram queimados por religiosos que acreditavam que o nome da banda, na verdade, era uma sigla para Kids In Satan’s Service. Em 1985, CDs e fitas cassete passaram a ser estampadas com o selo “Parental Advisory Explicit Content”, caso a Recording Industry Association of America julgasse que as canções contivessem palavrões.

Loja Sex, em Londres, do empresário Malcom McLaren e da estilista Vivienne Westwood (ao centro) ditaram a moda no punk rock

No entanto, a transgressão que sempre perpassou os muitos subgêneros do rock serviu de alimento para um mercado de grandes proporções. Até mesmo uma das vertentes mais antissistema do gênero, o punk, teve um trabalho bem feito de marketing por trás: a loja Sex, em Londres, administrada pelo empresário Malcom McLaren e pela estilista Vivienne Westwood, vendia e ditava a estética do final dos anos 1970, cheia de calças de couro e camisetas rasgadas e que condiziam com as composições de três acordes. Esse uniforme vestiu os Sex Pistols, que se tornou uma das principais bandas punks sob a tutela de McLaren.

Esse e outros tantos exemplos, aliás, deixam claro como, por trás de grandes bandas e artistas solo, sempre houve um mentor e um selo para gerir o grupo tal qual uma marca: Brian Epstein teve peso no sucesso dos Beatles e a Motown Records foi responsável por angariar talentos e fazer o soul eclodir.

Cena do filme Bohemian Rhapsody, mostra os copos de Pepsi sobre o piano de Freddie Mercury no Live Aid, em 1985: grande apelo para marcas

No começo dos anos 1980, com a MTV norte-americana no ar, o rock já era, oficialmente, mainstream. Os videoclipes potencializavam o apelo de vendas de uma banda, tanto que, a partir de 1984, a emissora passou a cobrar das gravadoras a exibição dos vídeos. Por ser capaz de lotar arenas e estádios, o rock passou, inclusive, a endossar causas sociais e a ser um terreno bem explorado por anunciantes. O Live Aid de 1985, concerto que reuniu diversas bandas para ajudar a combater a fome na África, recebeu investimentos significativos de marcas como AT&T, Chevrolet, Pepsi e General Electric. A recriação da performance do Queen no evento beneficente no filme Bohemian Rhapsody destaca, aliás, o copo de Pepsi­ sobre o piano e os tênis da Adidas calçados por Freddie Mercury na ocasião.

Ouvinte fiel

Quando a Kiss FM mudou a frequência de 102,1 MHz para 92,5 MHz, em fevereiro, a queda de audiência não chegou a 10%. Segundo a emissora, isso é algo que evidencia a fidelidade dos ouvintes que, além de serem amantes do rock clássico, buscam conteúdo e notícias. Para a diretora-geral Tais Abreu, diferentemente do público de rádios que tocam outros gêneros, os ouvintes de rock sintonizam a estação para ouvir a programação e não somente uma música. E é justamente este tipo de público — no caso da rádio, 75% é da classe AB — que atrai anunciantes como Dell, Itaú e Samsung. “Isso faz com que o rock seja um produto extremamente segmentado. É isso que as marcas procuram. Uma marca que anuncia na Kiss fica meses e anos, pois forma um consumidor”, afirma Juarez Macedo Júnior, diretor comercial da Kiss. A adaptação das rádios às plataformas digitais e a diversificação de conteúdo na grade faz com que as pessoas ainda continuem buscando as rádios para ouvir música, mesmo com a ascensão dos streamings. O Spotify, aliás, anunciou na Kiss uma ação que fez para o Rock in Rio. E a rádio, por sua vez, tem um perfil oficial na plataforma com playlists. Para Guilherme Freire, executivo comercial da Kiss, o rádio ainda desempenha um papel de companheiro. “Chega uma hora que a playlist não satisfaz mais. E a rádio toca uma música que a pessoa queria ouvir naquela hora, mas não sabia. E tem a voz do locutor, entrevistas, notícias sobre o que está acontecendo”, diz. A comunicação da Kiss FM é feita pela AlmapBBDO há cinco anos. Em abril, a agência criou a campanha “Vida longa ao rock. Fique em casa”, que trouxe pôsteres com astros do rock como Patti Smith, Keith Richards e Paul McCartney — todos na faixa etária mais vulnerável à Covid-19. Agência e emissora já conquistaram alguns Leões em Cannes, como o de Prata por “The Book of Rock”, em 2017.

Reinvenção do clássico

Trinta e cinco anos depois, a marca de refrigerante patrocinou o One World: Together At Home ao lado da concorrente Coca-Cola e de anunciantes como IBM, J&J e P&G. As lives com shows de artistas, aliás, têm sido a aposta de muitas marcas ao longo da quarentena. E, apesar de o sertanejo ser campeão em audiência do YouTube nessas transmissões, com oito das dez principais exibições realizadas até meados deste mês, o rock também teve seu espaço. Em maio, a Movida patrocinou uma live com Paulo Ricardo, ex-frontman do RPM. Durante a transmissão, aqueles que fecharam contratos anuais de locação de carros receberam 50% de desconto. A primeira parcela foi revertida para a ong Acredite – Amigos da Criança com Reumatismo, que combate o reumatismo infantil. De acordo com Charles Sperandio, diretor de marketing da Movida, ainda que a relação da marca com a música não se limite ao rock — a empresa também patrocinou uma live com Zezé Di Camargo e Luciano —, o gênero merece um incentivo maior no Brasil. “Nos Estados Unidos, existe uma renovação do rock o tempo todo. No Brasil, precisamos incentivar, porque o rock também existe aqui”, comenta. Com isso em mente, a marca promoveu, em 2017 e em 2018, concursos de bandas. As duas edições do Sua Banda Dá Um Show receberam centenas de inscrições de grupos de todo o País.

Volkswagen recriou a histórica capa de Abbey Road, dos Beatles, tirando o fusca de cima da guia.

Assim como o sertanejo, que ganhou novas roupagens, o rock é um gênero que se reinventou em cima de clássicos, analisa Luiz Sanches, chairman e CCO da AlmapBBDO. “O rock virou mainstream, algumas bandas foram colocadas em xeque, outras viraram tendência. Independentemente do estilo, heavy metal, nü metal, a banda chega ao mainstream, existe uma saturação e, logo depois, uma reinvenção”, afirma. Para o criativo, essa lógica também se aplica ao próprio mercado de comunicação: Rolling Stones, Beatles e Iron Maiden, cada qual à sua maneira, possuem assinaturas distintas. As marcas, por sua vez, têm de encontrar suas próprias assinaturas para que suas notas e seu gênero soem viscerais para as pessoas que as consomem. “A pessoa precisa achar verdade naquilo que é contado. E isso precisa ser feito de forma autêntica. A coisa mais ridícula que existe no rock é uma banda parecer com outra. Por isso é tão importante que cada banda tenha sua identidade”, comenta.

Recorrer a um clássico foi exatamente o que o Facebook fez em sua estreia nos intervalos do Super Bowl no começo deste ano. Com participação dos atores Chris Rock e Sylvester Stallone, o filme falou sobre como há uma comunidade ideal para cada usuário ao som de I Wanna Rock, do Twisted Sister. Ano passado, a Volkswagen recorreu a uma efeméride musical para divulgar o Park Assist, sistema de assistência de estacionamento da marca. No ano em que Abbey Road completou 50 anos, a agência Nord DDB recriou a capa do famoso disco dos Fab Four: estacionou o fusca da maneira certa — na foto original, o carro estava sobre a calçada. A empresa automotiva vendeu edições limitadas do disco com a nova capa e reverteu o valor em doações para a Bris, organização sueca de direitos infantis.

Estreia do Facebook no Super Bowl, neste ano, foi ao som de I Wanna Rock, do Twisted Sister: filme falou que há uma comunidade para cada usuário

Cinco anos atrás, a montadora lançou uma campanha criada pela Johannes Leonardo com a música The Sounds of Silence, de Simon & Garfunkel e, em 2019, comemorou os 50 anos da primeira viagem do homem à lua com o filme “A New Misson”, também criação da Johannes Leonardo, com Space Oddity, de David Bowie, como trilha sonora. A AlmapBBDO, que atende o anunciante no Brasil, escolheu Heroes, outro hit do artista inglês, para o lançamento do Polo, em 2017. Naquele ano, a mesma música embalou um comercial da Publicis Itália para a Heineken, e a ­DPZ&T adaptou os versos de Starman para o trabalho criado para o Itaú, “Stargirl”.

Quando a agência teve a ideia de contar a história de uma menina que sonhava em ser astronauta, essa música não estava prevista, conta Rafael Urenha, CCO da DPZ&T. “O rock ainda tem o poder de inspirar as pessoas. Essa música passa essa mensagem de ir o mais longe possível, chegar às estrelas. Por isso que grandes bandas atraem milhares de pessoas, muitas letras falam sobre sonhar, ir em frente contra todas as adversidades. É um tema recorrente no rock”, afirma. Em outra fase do projeto Leia Para uma Criança, do Itaú, a agência apostou em outra canção que se encaixa na categoria descrita por Urenha. Uma versão de Dream On, da banda Aerosmith, embala o enredo sobre uma garota que se torna uma cientista.

De acordo com o criativo, uma campanha quase nunca começa baseada em uma música específica. No entanto, cada gênero aciona uma determinada emoção que é adequada para um tipo de conversa. E, no caso do rock, a memória emocional é ativada já que, em muitos casos, as canções utilizadas foram ouvidas pelas pessoas ao longo de suas vidas. Nas estratégias da Movida, o gênero é utilizado pensando, principalmente, no público com idade de 30 a 50 anos, mas, dependendo da banda, acaba impactando uma camada mais jovem de consumidores. Em 2005, a empresa criou a Rádio Movida em parceria com a Deezer, com o intuito de melhorar a experiência dos motoristas ao volante.

Para Sanches, da AlmapBBDO, assim como o rock derivou de uma série de gêneros e, com os anos, foi ganhando novas vertentes, as marcas devem absorver influências para criarem linguagens próprias. “A música, de maneira geral, foi impactada quando apareceu o Napster, os serviços de streaming. Nosso mercado também sofreu, as pessoas foram impactadas por diferentes formas de se consumir conteúdo. Mas quando alguém acha que algo não serve mais, quem consegue se reinventar sai fortalecido”, diz. O executivo ressalta que, no entanto, o processo de se criar uma música é mais longo, enquanto a comunicação é mais ágil.

“Heavy metal não é moda”

Quando concedeu a entrevista para este especial, Andreas Kisser, guitarrista e atual líder do Sepultura, o fez por telefone. Na banda desde 1987, apenas três anos após a fundação pelos irmãos Max e Igor Cavalera, ele estava prestes a partir para mais uma das inúmeras turnês do grupo que fez o heavy metal brasileiro ganhar projeção internacional. Essa era a expectativa, mas a realidade da pandemia mudou tudo. O trabalho em torno das apresentações — o Sepultura havia acabado de lançar o elogiado Quadra, seu 15º álbum de estúdio — teve de ser substituído por planos de adiamento de shows e de como honrar ingressos já vendidos. São-paulino fervoroso e fã declarado de Black Sabbath e Ozzy Osbourne, que também lançou recentemente seu Ordinary Man, Kisser exalta os processos de renovação, refletidos em novos álbuns. Também deixa claro que os artistas sempre precisaram ter criatividade não apenas para o básico do seu métier, mas também para fazer as coisas acontecerem em cenários adversos. Qualidade essa que será novamente testada, tendo como motivo, agora, o famigerado coronavírus.

Meio & Mensagem — Depois de todas as mudanças que vimos na indústria da música, com o digital, a situação se acomodou?

Andreas Kisser — Isso que está acontecendo, com todas as turnês e eventos cancelados, é completamente atípico. Então, as regras mudarão. Ainda estávamos passando por um período de transição, principalmente, em relação ao streaming, que é bem injusto para o artista no lance de remuneração. O vinil tinha voltado com força total, algo completamente descartado há alguns anos. Agora, o coronavírus está mudando tudo, principalmente em relação ao business de arte, cultura e entretenimento. Antes, estava todo mundo na estrada, onde deveria estar, porque música é estar no palco. Gravar disco, registrar num estúdio, fazer entrevista, tudo isso é para estar no palco, ter aquele momento real da arte, que é o que esse vírus está privando. Não tinha nada muito definido, era muita coisa em produção e em evolução. O artista usa sua criatividade para fazer música e para fazer as coisas acontecerem. O Sepultura já tocou em 80 países. Tivemos de fazer coisas diferentes em países menos desenvolvidos ou onde tem menos shows, por uma cultura mais radical, religiosa ou política. Sempre encontramos meios criativos de fazer as coisas acontecerem. É um período, agora, de nos juntarmos e vermos possibilidades.

M&M — Qual é sua visão sobre a presença do rock e do metal no mercado hoje, uma vez que outros gêneros conquistaram as rádios e palcos nos últimos anos?

Kisser — Sempre tivemos programas específicos, como tenho o Pegadas de Andreas Kisser, na 89 FM, em São Paulo, que abre muito espaço para bandas nacionais. E a cena está sensacional. Tem muita gente fazendo turnê no exterior, gravando. Uma participação feminina forte nos últimos anos, bandas, vocalistas e instrumentistas que estão tendo mais oportunidades. É um estilo muito democrático, que não só abre espaço para todo tipo de pessoa e classes sociais, mas também absorve outras músicas. O Sepultura trouxe a percussão brasileira como elemento único da nossa cultura para o metal. O Metallica, a música ­country americana. Cada um com seu estilo e influência cultural, que mantém tudo vivo e forte. Não depende de rádio nem de mídia, ficar tocando a cada meia hora a mesma música. O fã do metal não compra produto pirata. Gosta do disco completo, da camiseta oficial. Mantém a cena forte porque vai para o lugar certo: a banda, a gravadora, a estrutura que mantém o heavy metal ativo. A galera não vai na esquina comprar uma música do Iron Maiden num CD pirata. O primeiro dia sold out do Rock in Rio foi o do heavy metal. A galera é fiel. A cena do metal brasileiro é sensacional.

M&M — Faz anos que tem o programa na 89. O que te move a arrumar tempo e disposição?

Kisser — Tudo. É um privilégio ter uma hora por semana numa rádio como a 89. O Junior (Junior Camargo), dono da rádio, estava numa crise porque tinham mudado para um estilo mais pop e não estava dando certo. Fizeram a cartada de voltar à rádio rock em 2012 e me chamaram, avisando que se não desse certo a rádio acabaria. Queriam um programa só para internet, não sabia se ia para o dial. Em dois meses a rádio voltou com força total e desde então faço o programa com meu filho, Yohan, que está com 22 anos. Já são oito anos, com 80%, 90% de espaço para bandas nacionais. As levo para entrevistar, tocar música, falar de arte. É sensacional. E tempo a gente arruma organizando. Tem hora que acha que não tem tempo. Agora, está aqui numa quarentena: “Caralho! Quanto tempo, o que eu vou fazer agora?” A família ajuda muito nesse aspecto de calendário e organização.

M&M — Qual é sua opinião sobre a relação entre músicos e marcas? O Sepultura já fez muitos projetos nesse sentido?

Kisser — Sim, já fizemos algumas propagandas com Volkswagen, Pepsi, Budweiser, Dicico. No contexto, o Sepultura representa o heavy metal, a propaganda sempre trabalha com esse tipo de estereótipo. Não vejo problema quando for um negócio bem feito, que fará sentido. É analisar caso a caso; tem coisas “pô, isso não dá pra fazer” e outras, sim. É outra fonte de renda que tem a ver com nossa imagem, o trabalho que fazemos na música, a roupa, o cabelo. Faz parte. O Sepultura tem sua marca de cerveja (feita pela Bamberg), de pimenta, vários produtos, de almofada a ovo de Páscoa. É um campo que se abriu para a música, em geral. O fã gosta de colecionar o produto oficial. Tem gente que não toma cerveja, mas compra porque é um produto da banda, para colecionar, ou quando está com outras pessoas. É um aprendizado trabalhar com um mestre cervejeiro, ver como são feitas, como chega à loja. Mexer com imposto, o que pode, o que não. É muito interessante não só ter a marca vinculada, mas também o aprendizado de outros tipos de negociação.

M&M — O Sepultura tem 36 anos. Consideram renovação de público um desafio?

Kisser — Nunca fizemos música pensando: para jovem, para tia, para vó ou para tocar na novela. Chega a ser um limite à expressão artística. Sepultura é liberdade total! A gente faz a música que a gente faz. Tem influências de bandas antigas, de novas, de livros, viagens, documentários. Tudo influencia na hora de escrever e fazer música. E no heavy metal o fã escutará o vinil do pai ou de um tio, guardará disco, camiseta. Porque vêm com muito carinho, faz parte da vida de cada um. Passa de geração para geração. Fazemos show no circuito do Sesc, é um ingresso barato, começa na hora, bem organizado. Você vê criança, avós, famílias inteiras indo ver um show do Sepultura e curtindo. Mudamos muito de formação, ganhamos e perdemos fãs, é normal. Tem muita gente que segue a carreira inteira, mostra para o filho, traz no show. Heavy metal não é moda. É uma coisa concreta e não passageira, com uma estrutura muito firme e bem montada.

M&M — Há artistas que não se posicionam muito (ou nada) em questões sociopolíticas. Outros são claramente engajados. Onde colocaria o Sepultura nesse aspecto?

Kisser — Temos a banda e as letras para nos expressar. Não falamos de Brasil nem EUA, porque viajamos o mundo. Tocamos em Berlim quando o muro ainda estava de pé. Vimos de perto surgirem novos países, Rússia, Ucrânia, Lituânia. Sempre foi importante nas letras falar da estupidez humana, de guerras, de toda essa palhaçada. Ideologia política, religião, conceitos inventados pelo ser humano e as pessoas acreditam como verdades absolutas. O Quadra fala desse conjunto de regras que todos acreditam, porque foram para escola ou leram livro do Einstein, Karl Marx ou a Bíblia. São pontos de vista sobre a realidade, não são verdades absolutas. Se tivesse nascido na Arábia Saudita, teria um outro ponto de vista do mundo, da sociedade, da mulher. Eles não estão errados, como nós não estamos. Cada um é consequência da sua bagagem cultural. Essas coisas estão na nossa música, fazemos arte, colocamos esses conceitos e deixamos as pessoas interpretarem, porque arte não é doutrina, como escola ou igreja, que você tem de acreditar, porque senão não passa de ano ou pode ser excomungado. A arte faz usar o cérebro. Picasso, Da Vinci, Jimi Hendrix, os Beatles mostraram pontos de vista e conceitos diferentes e mudaram realmente a concepção de muita coisa pelo próprio pensamento, mas não como doutrina. Expressamos nossas ideias por meio da arte.

Por: Roseani Rocha

Som oriental

Ícone da internacionalização da cultura coreana, o K-pop faz sucesso e também conquistou o Ocidente. Artistas se tornaram influenciadores, gerando altos índices de engajamento dos fãs, o que tem atraído cada vez mais marcas para este universo.

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