Da periferia para o mainstream

Em três décadas, o funk se transformou de um gênero musical marginalizado por públicos e marcas em uma indústria que movimenta milhões, com grande presença em todas as plataformas de mídia e com participação recorrente no line-up de festivais internacionais

Thaís Monteiro

O funk brasileiro como o conhecemos completou 30 anos em 2019 como o gênero nacional mais ouvido fora do País e emplacando espaços em discos de artistas internacionais, como Madonna, e festivais no exterior, como o Coachella. Em 2009, uma pesquisa realizada pelo FGV Opinião, instituto de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, constatou que o funk movimentava R$ 10 milhões por mês no Rio de Janeiro. Em pouco mais de dez anos, passou a gerar mais de R$ 40 milhões, segundo estimativas de Afonso Marcondes, head of music da Sync Originals e fundador da escola de negócios Musicness, e Müller Santos, diretor da GR6.

O caminho trilhado para chegar a esse número foi árduo. O funk surgiu no Brasil no final dos anos 1960, influenciado pelo funk norte-americano e expoentes como James Brown. Nos anos 1970, começaram a surgir na zona sul e periferias do Rio de Janeiro os bailes. “Não houve receptividade, cantavam nas favelas, comunidades, bailes clandestinos e rádios piratas”, conta Marcondes. Também nessa época, surgiram importantes produtoras que são referência até hoje, como Soul Grand Prix e Furacão 2000.

Mas foi só nos anos 1980, influenciado pelo ritmo Miami Bass, com batidas eletrônicas erotizadas e mais rápidas, que o gênero começou a ganhar expressão e características brasileiras. Até então, as músicas tocadas nos bailes eram clássicos americanos remixados e adaptados com algumas palavras em português. Um marco desse período foi o lançamento do LP Funk Brasil, do DJ Marlboro, em 1989. O disco vendeu mais de 250 mil cópias e marcou o nascimento do funk no Brasil como um gênero mais melódico, num mix com forró, samba e outras influências, e com a introdução da bateria eletrônica.

Mas não foi de imediato que o funk foi aceito pelo público em função de sua origem e popularização em classes econômicas mais baixas, canções que retratavam a realidade violenta das favelas, preconceito, letras eróticas e com palavrões. A democratização do acesso à internet, redes sociais e plataformas de streaming, no início dos anos 2000, foram três fatores que culminaram na ampliação de alcance e na aceitação do funk, que se tornou sucesso além das comunidades de baixa renda.

De acordo com Silvio Essinger, autor do livro Batidão: uma história do funk, essa “mudança de jogo” aconteceu a partir dos anos 2010. “O funk era e ainda é algo bem marginalizado. Começou a mudar há cerca de seis anos, quando músicas como Bum Bum Tan Tan, Baile de favela, Olha a Explosão e outras entraram no top 200 global dos principais parceiros de streaming”, afirma Sergio Affonso, presidente da ¬Warner Music Brasil.

Um pouco antes, na década de 1990, o gênero começou a conquistar espaço na TV com músicas em trilhas sonoras de novelas e aparições de DJ Marlboro e Mr. Catra em programas como o da Xuxa. “O funk passou por um processo de transformação, acompanhando a evolução social, tanto da música quanto do comportamento artístico e do público. Ele está vivendo um grande momento, com novos artistas surgindo e renovando o cenário. Hoje, o funk é, sem dúvida, um dos principais representantes da música brasileira”, analisa Juliana Costantini, gerente de conteúdo musical do Multishow.

Gênero está presente na programação de canais como o Multishow, na TV por assinatura

O canal de TV por assinatura já produziu três programas com Anitta, estreou um formato do TVZ com Lexa e exibiu o programa Bagulho Louco, com Mr. Catra, em 2017. Além disso, recebe artistas na grade de programação, nas premiações e transmite shows de funk. “Não sendo apenas um ritmo de festa, o funk cresceu como um estilo de vida, o público começou a ter maior aceitação para as batidas e as letras, que ficaram mais clean. MC Kevinho fez hits gigantescos no final da década de 2010 e raramente tinham palavrão. Isso ajudou muito o gênero a atingir outros públicos e ter receptividade da mídia e rádios. A mistura do funk com pop foi essencial para quebrar a barreira de preconceito e tornar-se um gênero nacional. A ascensão dos funks com letras explícitas, algo comum e clássico, foi exponencial também”, contextualiza Vithor Reis, editor de música na Deezer.

De acordo com dados do Spotify de 2019, o funk cresce, em média, 51% ao ano desde 2014, quando a plataforma começou a operar no Brasil. O gênero empata com o sertanejo como um dos mais ouvidos no País. A música mais famosa é Bum Bum Tan Tan, parceria de MC Fioti com Future, J Balvin, Juan Magán e Stefflon Don, lançada em 2018, seguida por Olha a Explosão, de MC Kevinho, e Vai Malandra, de Anitta, DJ Yuri Martins, Maejor, MC Zaac e Tropkillaz.

Dois desses lançamentos contaram com parcerias internacionais. Apesar de artistas de fora do Brasil demonstrarem interesse no ritmo desde os anos 2000, principalmente por conta de Diplo e M.I.A., foi com Anitta, com contrato assinado com a Furacão 2000 em 2010, que o funk começou a alçar voos maiores. Anitta é recordista de parcerias internacionais, em especial com reggaeton e pop. Entre seus parceiros estão Diplo, Major Lazer, Madonna, Tropkillaz, Maluma, Becky G, J Balvin, Iggy Azalea, Sofia Reyes, Rita Ora, Black Eyed Peas e Snop Dog. Anitta, inclusive, é destaque do line-
up do festival Coachella, previsto para outubro em Indio, na Califórnia.

Desde 2016, o funk cresceu 4.694% globalmente, apontou o Spotify. Um estudo do jornal Folha de S.Paulo constatou que o ritmo é o gênero brasileiro mais ouvido internacionalmente. “O momento atual do funk é o melhor de toda a sua história: agora ele não só é parte inalienável da música popular brasileira como está conseguindo uma promissora inserção no pop global. É a base da música urbana que o Brasil tem a exportar para o mundo”, diz Essinger. A Warner Music, por exemplo, prepara um álbum denominado Funk Total para o mercado global e planeja shows em Nova York, Londres, Miami e Los Angeles. “Vamos fazer um baile funk na Time Square, quem sabe para celebrar o fim da Covid-19”, projeta Affonso.

Ostentando marcas

No início da segunda década dos anos 2000, uma das vertentes do funk, o ostentação, ficou famosa por mencionar marcas em suas letras. Popular principalmente em São Paulo, o ritmo se inspira em rappers americanos e se vangloria de carros importados, joias, roupas de grife, produtos de luxo e mulheres. Muitas das letras citam nomes de marcas, como é o caso de Plaquê de 100, sucesso de MC Guimê que fala de produtos de Citroën, Kawasaki e Suzuki. Muitas vezes, as marcas não aceitavam serem citadas. Konrad Dantas, fundador da KondZilla, lembra que Johnnie Walker pediu para derrubar um clipe. “Elas não queriam suas marcas associadas ao público C e D. Após o funk virar um ‘fenômeno’ na música com streaming e visualizações altíssimas, muitas das vezes passando artistas do pop, rap, samba, rock e alguns dos sertanejos, marcas e mídia deram atenção”, analisa Afonso Marcondes, head of music da Sync Originals e fundador da escola de negócios Musicness.

Müller Santos, diretor da GR6, explica que o funk ostentação não visava lucro em cima desse merchan gratuito e argumenta que esse fator pode ter contribuído para que marcas demorassem a fazer parcerias com artistas. “Muitas bebidas começaram a ser consumidas porque eram retratadas nas letras de funk. O que me deixa chateado é que o crédito provavelmente foi para pessoas que não estavam por trás desse crescimento, tipo a pessoa de marketing dessas empresas”, diz.

As letras de música, segundo Fábio Mariano, professor e especialista em sociologia do consumo da ESPM, podem citar as marcas que os artistas desejam, e o funk ostentação está mais na dimensão simbólica do que, de fato, em uma relação de consumo. “São marcas que eles valorizam e imprimem num ato de empoderamento, de mostrarem: ‘eu sou negro, venho de classe baixa, mas eu agora tenho acesso a isso também’”, afirma.

Negócio para os ouvidos

Quando o funk surgiu, sua principal fonte de receita eram os bailes. Lá, até hoje, comerciantes, barbearias, cabeleireiros, lojas de roupas, acessórios e salões de tatuagem, muitas vezes informais, se mobilizam para atender o estilo dos jovens frequentadores. Isso sem contar o comércio de drogas, lembra Fábio Mariano, professor e especialista em sociologia do consumo da ESPM. “Em geral, o DJ leva todos os equipamentos. Se ele faz baile de três a quatro vezes por semana, pode tirar de R$ 1,2 mil a R$ 1,6 mil. Os ingressos não são cobrados porque é fluxo, é na rua, mas quem patrocina isso são os comerciantes porque eles faturam”, analisa.

Mariano já atribui grande parte da receita do ritmo aos shows, monetização no digital e reprodução de músicas no
streaming. De modo geral, segundo especialistas, é difícil quantificar quanto o funk movimenta, pois existe uma cadeia em torno do gênero e nem sempre é possível registrar. Além disso, conforme aponta Konrad Dantas, fundador da KondZilla, existe uma diferença grande entre o mercado do Rio de Janeiro e o de São Paulo e os demais. “O funk do Rio existe há 40 anos. Aqui em São Paulo, o desenvolvimento começou a ganhar força faz uns dez anos”, conta.

Do ponto de vista da indústria, o funk começou a ser olhado com atenção pelas gravadoras nos anos 1990. O disco do DJ Marlboro foi abraçado pela gravadora Polydor, subsidiária do Universal Music Group. A Sony Music conta com artistas do gênero em seu catálogo desde o início dos anos 1990 e hoje representa nomes como Dennis DJ, Wc no Beat e Rennan da Penha. A Warner fez várias incursões no passado, tendo lançado, inclusive, o primeiro álbum de Mr. Catra, mas começou a ter uma relação mais forte com o ritmo por volta de 2014. Hoje, tem dez artistas de funk sob contrato.

Show de Dennis DJ, um dos principais nomes representados pela Sony Music no gênero

Uma grande virada foi o surgimento de produtoras e gravadoras especializadas em São Paulo, como aconteceu no Rio de Janeiro com a Furacão 2000, mas, desta vez, alavancadas pelas redes sociais. “O funk começa muito dependente, diria até refém, das equipes de som; passa pelas grandes gravadoras nos anos 1990 e começo de 2000 sem deixar muita história; volta para as favelas e lá, ao mesmo tempo que se submete ao jugo das facções criminosas, encontra espaço para ser livre uma vez que começa a ser produzido na favela para a favela”, detalha Essinger.

“Lembro que lá no começo dos anos 1990, equipes de som lançavam seus discos ainda em vinil, que era mais barato do que o CD, de forma independente. Não eram coisas que interessavam às grandes gravadoras, era mais para o público de baile, para os DJs tocarem e os MCs se promoverem. Não sei se os discos dessas gravadoras ajudaram muito a popularizar o funk. Naquela época, eram as rádios e as equipes de som nos bailes que estouravam as músicas. O que existe hoje, com Kondzilla e GR6, está num patamar muito acima”, complementa o autor do livro Batidão.

A produtora, gravadora e editora GR6 iniciou o trabalho com produção de shows de pagode em 2004. Em 2006, começou a realizar eventos esporádicos de funk em salões da Vila Ede, na zona norte de São Paulo. “Até 2010, o funk era limitado aos subúrbios e periferias. Existiam muitas restrições econômicas, preconceito e gestão policial”, diz Müller Santos, diretor da GR6, que atende 300 artistas. Mas o funk sempre foi reconhecido nacionalmente, ressalta. “Uso como referência que o funk é como a capoeira. Sempre existiu, mas nunca atingiu a alta renda. Atribuo o melhor posicionamento a GR6, Marlboro, Catra, Nego Blue e outros artistas da geração mais velha. Ela foi crucial para a sobrevivência do funk. As produtoras especializadas fizeram a manutenção e entrega final, para fazer com que ele tivesse reconhecimento, e temos que dividir o crédito com artistas mais novos, como Ludmilla, Anitta, Livinho, Nego do Borel e outros”, analisa.

A KondZilla, lançada em 2012 como produtora de videoclipes de funk é, atualmente, uma holding que engloba KondZilla Filmes (produção e direção audiovisual), KondZilla Records (gravadora, distribuidora e agência de artistas e shows), KondZilla Wear (produtos licenciados, como roupas e acessórios) e o portal de conteúdo sobre comportamento Kondzilla.com. “Percebi que dava para expandir quando comecei a vender bonés, em 2013, e vendi 500 em um dia”, recorda Konrad Dantas.

A partir dessa venda, foi criada a marca própria. Em 2017, foi criada a KondZilla Records e o MC Bin Laden foi o primeiro agenciado. A ideia, diz Dantas, era ter um case para mostrar a KondZilla ao mercado. “A ideia não era abrir escritório ou virar concorrente dos meus clientes. Com o passar do tempo, comecei a pensar que isso seria inevitável. Já havia uma movimentação dos meus clientes para eles produzirem os próprios conteúdos e decidi antecipar. Qualquer dia viraria empresário ou diminuiria o volume de clientes que quereriam trabalhar comigo”, explica. A KondZilla Records tem 70 agenciados, além dos selos que distribui.

Konrad enxerga a ascensão de gravadoras especializadas no funk como a continuidade da indústria se formando, como aconteceu no Rio de Janeiro com a Big Mix e a Furacão 2000. “Estamos competindo pelo market share de multinacionais como Warner, Sony e Universal. Assim como a A&R (área de artistas e repertórios) dessas gravadoras competem pelos talentos independentes que estão despontando, também estará o A&R da KondZilla”, afirma.

O sucesso das empresas, segundo Konrad, se deve ao trabalho com diversas frentes para promover o funk — como aconteceu com o sucesso das músicas na série Sintonia (2019) para Netflix —, e ao trabalho baseado em quatro pilares: tecnologia, música, audiovisual e publicidade. “Produzo audiovisual para vender streaming. Conecto-me às marcas para diminuir o risco do meu investimento. Uso tecnologia para ter gestão estratégica baseada em resultado. Nossa produção tem que ser uma gestão de produção orientada para resultado. Ninguém tem que achar mais nada hoje, é interpretação de relatório: como você lê, como você digere e executa sua estratégia a partir daquele relatório. A história da KondZilla não foi sempre assim, buscamos ser assim”, declara.

O canal KondZilla, por exemplo, é o maior do YouTube na América Latina. “E o impacto na indústria é grande, porque o artista ganha audiência e a produção ganha em qualidade. Os investimentos são maiores e as equipes vão se profissionalizando. No final, o marginalizado virou mainstream. O audiovisual ganhou com isso, porque se tornou mais uma narrativa para ser explorada. É a hora do funk como gerador de conteúdo e experiência”, defende Squarehead, diretor de cena da Stink Films.

Vídeo-conceito do projeto “Fluxo do Futuro”, de Kevin O Chris e da dupla de produtores DKVPZ

Squarehead, Coala Lab e AKQA lançaram, em janeiro, um vídeo-conceito do projeto “Fluxo do Futuro”, de Kevin O ¬Chris e da dupla de produtores DKVPZ. O vídeo simula como seria um futuro em que o funk fosse criminalizado, em resposta a uma proposta de lei discutida pelo Senado em 2017 que propunha a criminalização do funk como crime de saúde pública. A proposta foi rejeitada pela Comissão de Direitos Humanos.

Chama ela

Um dos expoentes do funk pop, Lexa lançou as primeiras músicas em 2015, ano em que assinou com a Som Livre, e, atualmente, tem um bloco de carnaval e comanda o programa TVZ, do Multishow. A cantora analisa o crescimento da indústria do gênero e como alia sua formação em marketing ao desenvolvimento de sua carreira musical.

Meio & Mensagem — Você tem uma formação em marketing. Usa esses aprendizados no seu dia a dia?

Lexa — Sim, em todo o planejamento. Quando lanço algum projeto, me baseio na experiência e no estudo, olho de fora da caixinha. Sinto-me mais preparada para tratar de negócios na parte técnica e usufruo dos meus conhecimentos no trabalho. Amo, agrega demais.

M&M — Como é o olhar de um profissional de marketing para o funk?

Lexa — É um desafio maravilhoso. O funk conversa com o grande público. Hoje, existem grandes lançamentos de funk, porque existe uma estrutura por trás. Como chegar no público-alvo com sua verdade, da forma certa. Existe segregação? Existe! Existe um público que abraça mais o segmento? Existe! O cenário muda a todo momento? Sim. Vivemos sobre estudos de cenários e ideias.

M&M — E para as marcas?

Lexa — Antigamente falava-se “funk” e a conversa parava por ali. Hoje, o funk conquistou seu espaço até no mercado publicitário. Ficou mais profissional em todos os sentidos. Sou um exemplo, fiz campanhas para marcas gigantescas porque criei minha identidade, estética e discurso de forma coerente. Clipes bem feitos, músicas bem produzidas. Diversas marcas querem estar mais por dentro, abraçar a ideia do funk.

M&M — Qual é o estágio atual do funk?

Lexa — Em crescimento, ocupando espaços importantes como em charts (paradas de sucesso), TVs e campanhas. O mundo está curioso pelo funk, que batida é essa que ninguém consegue ficar parado? Ainda existe preconceito com o segmento, mas o funk já provou que é muito maior. Além de contribuir com alegria, o funk contribui financeiramente, gerando empregos e renda. Um segmento em ascensão no mundo, algo genuinamente nosso.

M&M — Você é de uma nova geração do funk, mais pop, mainstream e com apelo para as marcas. É correto afirmar isso?

Lexa — Meu profissionalismo e a minha entrega me fizeram chegar até aqui. É assim que gosto de trabalhar e, automaticamente, me torno mais interessante para marcas, porque além de existir muita verdade, existe coerência. Quando você faz algo direito e de coração, não tem como não dar certo. Sempre fui estrategista e honesta, por isso consegui alcançar marcas e os charts, foi uma resposta para o trabalho que eu construí.

Relação com marcas

Na percepção de Mariano, da ESPM, a associação de marcas com o funk sempre foi difícil devido ao preconceito e restrições da sociedade, que frequentemente desqualifica o funk como música menos sofisticada. Os processos que visam criminalizar o gênero e as proibições aos bailes no Rio de Janeiro com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), por exemplo, “geram a interpretação que o baile funk é sempre antagônico a algo que procure a paz e a segurança”, diz. “Fica na cabeça de todos, inclusive dos gestores de marca, que onde tem funk tem criminalidade, tem ausência de segurança, ou seja, muito risco para marca”, avalia.

Foi necessário o surgimento de ícones, como MC Carol e Anitta, para marcas realmente se envolverem com o funk, mas sem, de fato, marcar presença onde o funk sempre esteve, nas favelas, analisa Mariano. Para Konrad, as marcas ainda têm certa restrição em se associar com talentos que estão começando. “Se você contrata uma Ivete, uma Anitta, sabe que as chances delas se envolverem em escândalos é mínima. O nosso trabalho é revelar artistas e o mercado fica um pouco receoso de como será o comportamento deles ao longo da carreira”, conta.

Algumas das primeiras marcas a investir no gênero foram confecções menores, como Bad Boy, e bebidas. Quando o funk começou a alcançar outras classes sociais com o advento das redes sociais, o interesse publicitário cresceu. “O funk permite múltiplas opções de negócios com qualquer área comercial ou industrial, já que o público vai de cinco a 50 anos, entre classes sociais diversas”, explica Afonso Marcondes.

Anitta foi contratada pela Skol Beats como head de criatividade e inovação da marca da Ambev

“Faz alguns anos que verificamos que o funk ganhava força, mas foi só no ano passado que chegamos em uma bebida que tinha a cara desse ritmo”, conta Gabriela Gallo, gerente de marketing de Skol Beats. Em setembro de 2019, Anitta se tornou head de criatividade e inovação da marca. Além de discutir a estratégia de marketing, de negócios e inovações, Anitta é responsável por auxiliar a marca no lançamento de ao menos um produto autoral por ano. O primeiro foi a versão Skol Beats 150BPM, que faz referência ao funk 150 BPM, que é o mais agitado do gênero. Para o lançamento, Skol Beats realizou parcerias com DJ Marlboro, Heavy Baile, Tati Quebra-Barraco e Tati Zaqui para recriar as músicas Já é Sensação e Glamurosa no ritmo do 150 PBM. A Skol Beats mantém, ainda, parceria com Dennis DJ para lives durante o período de isolamento social.

O McDonald’s trabalha com ritmos brasileiros em campanhas e o funk também entrou na dança. Para anunciar a extensão temporária da linha Cheddar McMelt, em 2015, a rede e a DPZ&T criaram o funk Novinhos Cheddar. Em 2018, as campanhas “Que Tasty Foi Esse” e “Cheddar Encaixa” foram criadas a partir de adaptações das músicas Que tiro foi esse, de Jojo Maronttinni, e Encaixa, de MC Kevinho e Léo Santana. “Em todas ações visamos gerar boas experiências aos consumidores e a música tem esse poder de aproximar e gerar bons momentos. Esse é um recurso que utilizamos bastante e não só com o funk, que tem um apelo a diversão e entretenimento que reforça esse sentimento nas campanhas em que está envolvido. Nossas iniciativas já trouxeram hits como sertanejo, rock, pop e música romântica”, diz João Branco, CMO do McDonald’s Brasil.

Funk Novinhos Cheddar, criado pela DPZ&T, promoveu a linha Cheddar McMelt, do McDonald’s

Atualmente, artistas como Ludmilla, Anitta e MC Kevinho estrelam peças publicitárias de marcas como TIM, Vivo, LG e Claro, em mídia tradicional, mas ainda há espaço para que essa relação se estreite, diz Gabriel Andrade, sócio-fundador do Coala Festival e do Coala Lab. “Não reconhecer a potência do funk é impossível. Ainda existem muitos caminhos a serem explorados, tanto do lado das marcas quanto dos artistas. O funk se fez sozinho. Mesmo com tantas barreiras e até tentativas de proibição, é um dos principais ritmos brasileiros e, provavelmente, o mais consumido no exterior de alguns anos para cá. Nesse contexto, muitos artistas não veem a necessidade ou não consideram a possibilidade de se associar a uma marca. Esse laço entre a indústria do funk e a do marketing pode ser estreitado e gerar bons frutos”, argumenta.

Para Konrad Dantas, o artista ainda precisa ser reconhecido como criador dos projetos com marcas. “Se o artista está ocupando aquele espaço, que fez com que o anunciante o buscasse para promover uma canção, ele tem que entender qual é a natureza do negócio do artista, que não é publicidade, é música”, coloca. O argumento de Konrad dialoga com a percepção de Renato Zandoná, group creative director da ¬AKQA, de que as marcas precisam reconhecer que é necessário dialogar com quem tem lugar de fala dentro do movimento para criar projetos. A AKQA foi responsável pelas campanhas de lançamento das séries Sintonia e Elite (esta com com MC Kevinho), ambas da Netflix, e acaba de lançar videoclipes exclusivos de MC Soffia e NGKS para uma plataforma cultural de Nike Air Max.

“Todos reconhecem, mas poucos podem se associar ao funk. O funk não é apenas um estilo musical. Funk é o reflexo de uma cultura cheia de complexidade, dentro de um contexto político e de tempo. Tem origem negra e periférica. As letras, as pautas, as tendências que são criadas ali na quebrada e que hoje são vistas em desfiles de moda, a escolha das marcas que usam nos fluxos, as bebidas, os cortes de cabelo. O maior canal do YouTube. Milhões de visualizações diárias. Funk é muito mais que um estilo musical e é muito fácil estereotipar algo por não conhecer a fundo o que é aquilo. E mais fácil ainda se apropriar de algo que não é seu. Não são todas as marcas que podem falar ou usar o funk em sua comunicação. Precisa ser verdadeiro, precisa ter lugar de fala”, defende.

Favela chegou

Estreou no funk em 2012 como MC Beyoncé. Em 2014, assinou com a Warner Music e iniciou nova fase da carreira como Ludmilla. Indicada ao Grammy Latino de Melhor Álbum Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa pelo disco A Danada Sou Eu (2016), a artista fala sobre o papel social do funk e o desafio de tornar o ritmo mais igualitário.

Meio & Mensagem — Quando você começou a se envolver com o funk, qual era a percepção geral sobre essa profissão?

Ludmilla — Meu envolvimento com o funk começa desde muito cedo, na adolescência. Cresci ouvindo o ritmo e outros gêneros populares do Brasil. O funk, assim como o samba, que vem de comunidades, sempre sofreu muito preconceito, ainda mais vendo isto há dez anos, por exemplo. Era uma profissão que ninguém via como algo que daria certo ou que passasse credibilidade. O preconceito sempre foi enorme, e lutar contra ele nunca foi fácil, ainda mais para pessoas pretas e faveladas. Mulher cantando funk então, nem se fale.

M&M — Qual era sua visão sobre isso?

Ludmilla — A visão foi sempre de que teríamos que lutar bastante para atingir o patamar que temos hoje, por exemplo. O preconceito era visível. Graças a Deus, depois de anos de luta, hoje, junto com diversos incríveis artistas, temos mudado este cenário.

M&M — Quanto o funk evoluiu desde que você começou e em quais sentidos?

Ludmilla — Nossa, muito! Hoje, o funk atinge diversas pessoas, de várias classes sociais, no mundo inteiro. O funk se tornou pop, o que fez ele atingir o mainstream e o preconceito diminuir muito, mas temos muito pelo que lutar ainda.

M&M — No que um artista de funk se diferencia de artistas dos demais gêneros?

Ludmilla — Todos têm seu espaço e cada gênero uma história, no caso do funk, que é popular, fala muito da vida das comunidades, de entretenimento. Hoje, temos diversos tipos de funk. Você quer funk consciente? Temos. Você quer funk ostentação? Temos. Você quer pop funk? Temos. E muito mais, e isto é muito bacana.

M&M — Qual é o apelo do funk para o público? Existem oportunidades no funk que ainda não são exploradas?

Ludmilla — É mostrar a realidade das comunidades, é mostrar que o funk e que a música salvam vidas, que funk também é cultura e faz parte da nossa cultura do Brasil, que o funk também é pop e vai dominar o mundo com sua verdade e criatividade. O funk sempre tem algo a ser explorado, alguma novidade, e temos trabalhado nisso a cada dia, seja mostrando isso para o mundo, seja exaltando a cultura popular brasileira.

M&M — Qual é o momento atual do funk? Quais são os desafios a serem superados?

Ludmilla — O momento atual do gênero é um dos melhores já vistos. Estamos atingindo um patamar muito bacana, mas falta muito ainda, principalmente quando o assunto é equidade de gênero, e falo isto em todos os meios profissionais, não só no funk. Mais espaço para as mulheres não só na frente das câmeras, mas por trás delas. Queremos mais espaço para elas comandando o cenário musical, produzindo e muito mais. Queremos mulheres no topo!

 

Em louvor

Mauricio Souza, diretor de A&R gospel da Sony Music Brasil, e Leonardo Gonçalves, cantor de música cristã contemporânea, analisam o crescimento da temática e ausência de marcas.

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