Equalização de negócios
Um dos primeiros setores a sentir o impacto do universo digital nos resultados financeiros, a indústria fonográfica amargou anos de quedas consecutivas nas vendas físicas.
Um dos primeiros setores a sentir o impacto do universo digital nos resultados financeiros, a indústria fonográfica amargou anos de quedas consecutivas nas vendas físicas.
Fernando Murad
Um dos primeiros setores a sentir o impacto do universo digital nos resultados financeiros, a indústria fonográfica amargou anos de quedas consecutivas nas vendas físicas.
A transformação do modelo de negócio, impulsionada pela mudança do comportamento do público, que deixou de comprar e passou a ter o acesso mediante serviços de assinatura, marcou o início da retomada — o streaming já representou 69,5% das vendas totais no Brasil em 2018; no mundo, esse percentual foi 47%.
Nos embalos da transição da indústria, as gravadoras se apoiaram no poder da música para conectar públicos e marcas para se reinventar. Posicionadas como empresas de conteúdo, mídia e entretenimento, essas companhias têm estreitado o relacionamento entre artistas e anunciantes, desenvolvendo projetos especiais como a criação de plataformas de eventos, shows, ações de product placement e a realização de campanhas, amplificando as receitas e o alcance dos artistas e suas obras.
A música tem o poder de mexer com as emoções das pessoas. Ao longo do século passado, essa potência sonora se transformou numa indústria bilionária, responsável por consagrar ícones da cultura pop e ditar tendências na sociedade. No entanto, no final do século passado, em meio à transição do vinil e cassete para o CD e DVD, e ao desenvolvimento da internet, o avanço da pirataria de mídia das obras fonográficas e a proliferação de programas para download gratuito de música deram o tom da quebra no ritmo do crescimento do mercado.
Responsável por movimentar US$ 35 bilhões no mundo, entre 1997 e 1998, a indústria fonográfica foi um dos primeiros setores a sentir os impactos da transformação digital. Vinte anos após o pico histórico, faturou US$ 19,1 bilhões, em 2018, dos quais
US$ 298,8 milhões no Brasil. Com crescimento de 15,4% em relação ao ano anterior, contra 9,7% da média global, o País foi um dos mercados de maior expansão. A América Latina, por sinal, é a região de crescimento mais acelerado no mundo há quatro anos consecutivos: alta de 16,8% em 2018. Os dados são do Global Music Report 2019, da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI, na sigla em inglês).
A disrupção que mudou a forma como são utilizados serviços como transporte, alimentação e hospedagem, por meio de apps como Cabify, Uber, 99, Rappi e Airbnb, bateu primeiro à porta do universo da música, mas a indústria demorou para entender essa mudança, em especial no Brasil. Ícones deste novo mercado, o iTunes nasceu em 2003 e o Spotify, no final de 2007. No entanto, chegaram ao País apenas em 2011 e 2013, respectivamente.
Indústria da música no Brasil acumula dois anos de crescimento acima da média global. Em 2018, o setor faturou R$298,8 milhões, o que representou alta de 15,4%
“O Brasil sofreu pelo atraso da entrada de grandes players digitais. Por outro lado, a indústria demorou a assimilar a transformação e a disrupção da tecnologia. Naquele momento, as pessoas não entendiam muito bem o que estava acontecendo”, recorda Paulo Lima, presidente da Universal Music, e que, em 2004, era presidente da iMusica, primeira empresa de música digital da América Latina.
O que em um primeiro momento parecia ser um movimento em busca de alternativas mais baratas de consumo de música, se revelou ser uma mudança profunda nos hábitos dos consumidores. “As gravadoras ficaram focadas no formato comercial. Entenderam que o consumidor buscava era a forma mais barata. Na verdade, o que mudou foi a cultura, o comportamento”, comenta Alexandre Wesley, diretor de shows, festivais e relacionamento com marcas da Som Livre.
A virada da chave para o setor foi o entendimento do novo modelo de negócio moldado para um novo público. “A vida inteira a música foi produto. Íamos a loja comprar cassete, vinil, CD, DVD… Depois, entrávamos na loja online para comprar download. Hoje, pagamos pelo serviço de música digital. Você tem acesso e escolhe o que escutar, onde e na hora que quiser. Isso é a troca de consumo”, explica Paulo.
Não por acaso são os serviços de streaming que têm impulsionado a recuperação do faturamento das gravadoras. Em 2018, a receita com essas plataformas representou 46,8% do total do mercado global, segundo a IFPI. O faturamento com os serviços de streaming avançou 46,8% no período. As assinaturas pagas cresceram 32,9% e encerraram o ano passado com 255 milhões de usuário no mundo.
No Brasil, os serviços de streaming cresceram 46% no ano passado em relação a 2017. O digital representou 98% das vendas e a tendência é que as vendas físicas sejam mínimas até o final do exercício, projeta Wilson Lannes, vice-presidente da área de business development da Sony Music Brasil. “A popularização dos serviços de streaming afetou de forma mais radical o Brasil nos últimos três anos. Aí é que podemos dizer que teve uma virada no consumo digital”, explica.
Embora já seja representativo nos negócios da indústria, o segmento ainda tem potencial enorme. “A projeção do mercado é de crescimento com a chegada de novos players, sem falar na taxa de penetração do serviço, que ainda é baixa. Temos 240 milhões de celulares no Brasil e estamos longe de atingir 10% de uso. Tem muito espaço para crescer”, projeta Paulo, da Universal. Estima-se que o Brasil possua 10 milhões de assinantes de streaming.
Novos negócios
A Goldman Sachs vislumbra esse potencial no mundo. Na edição deste ano do estudo Music in the air, o banco de investimentos projetou faturamento global para a indústria da música de US$ 131 bilhões em 2030, número que inclui os segmentos de live music, com US$ 38 bilhões; publishing (receita com direitos autorais), com US$ 12,5 bilhões; e receita com fonogramas, com US$ 80 bilhões.
“A transição foi um processo que afetou bastante a indústria. Num primeiro momento, o declínio das vendas físicas não era compensado pelo crescimento das digitais, e a indústria teve que se adaptar bastante a essa situação”, recorda Lannes. Além de focar o digital e transferir o processo de controle de estoque, distribuição, manufatura e venda para um parceiro (o que ocorreu em 2016), a Sony Music investiu, há dois anos, na estruturação, no Brasil, da divisão business development, criada pela gravadora na América Latina em 2009.
Edição deste ano do Estudo Music in the air, da Goldman Sachs, projeta faturamento global de US$ 131 bilhões para a indústria da música em 2030
A área atua com produtos como product placement, sincronização (utilização de músicas em trilhas), campanhas de marketing e captação de patrocínio para shows e eventos, no pilar brand; e booking e produção de shows e festivais (principalmente na plataforma proprietária Filtr Live), no pilar live. “A área tem a missão de aproximar os artistas das marcas e as marcas do seu público. Nossa expectativa é de que dobre de tamanho nos próximos dois anos, em faturamento e lucro operacional. A ideia é conseguir isso através dos produtos que já temos e da criação de parceria de uma forma mais agressiva”, explica Lannes. A divisão responde por 10% do faturamento e do lucro operacional da Sony e a meta da empresa é triplicar essa participação nos próximos cinco anos.
No caso da Universal Music, a divisão Music & Brands foi criada em 2006 com a visão de que a música vai além do lançamento de um produto audiovisual. “Enxergamos o artista como uma empresa, uma marca, e a Universal global abriu essa divisão há muito tempo porque viu o potencial. As marcas precisam da música para se conectar. A música tem a capacidade de mexer com o emocional das pessoas”, afirma Paulo Lima, citando o exemplo de uma passagem da infância, envolvendo a música Breaking all the rules, de Peter Frampton, que foi trilha de um comercial da marca Hollywood. “Não fumava, não sabia o que era Hollywood, mas amava a música. Conectou e nunca mais esqueci”.
Na Som Livre, os investimentos na área de shows, festivais e relacionamento com marcas iniciaram em 2008. “Começamos fazendo essa proposta de promotor de shows, com parceiros para dividir riscos. Todo negócio tem risco, mas quando você promove, vive esse risco de verdade, independentemente da capacidade de realização. Nos propomos a realizar e depois vamos buscar o dinheiro. De lá para cá, começamos a desenvolver projetos com marcas”, recorda Alexandre Wesley, diretor de shows, festivais e relacionamento com marcas da Som Livre.
Parceria afinada
Com anunciantes e artistas bastante abertos a projetos em conjunto, as gravadoras têm trabalhado para serem o mais assertivas possível no momento de identificar oportunidades e estabelecer conexões. A Universal Music, por exemplo, adotou a ferramenta Music Match. Criada pelo escritório de Londres da multinacional e customizada para o mercado brasileiro, a tecnologia utiliza atributos das marcas e dos artistas, com arquétipos, algoritmos e pesquisas de campo, para identificar perfis convergentes. “É um match com mais ciência para tentar encontrar o artista certo que conecta com aquela marca para desenvolver o projeto”, resume Paulo Lima.
E o papel do artista na estratégia das marcas ganhou outros contornos. “A Universal não é uma gravadora, é uma empresa de conteúdo, mídia e entretenimento. O artista passou a ser visto como mídia nos mundos digitais. Para uma marca é muito interessante ter um artista que tenha 20 milhões de seguidores nas redes sociais, e os artistas se engajaram, viram que tem um modelo de negócio novo e forte, e a tendência é crescer”, projeta.
Na opinião de Wilson Lannes, vice-presidente da área de business development da Sony Music Brasil, as marcas têm, de fato, se mostrado mais abertas, e a especialização das empresas no marketing, promoção e distribuição de conteúdo musical têm se mostrado um diferencial competitivo. “Identificamos que os projetos de maior sucesso são os que têm sinergia com a Sony Music, em função da força da gravadora em relação a promoção, marketing e criação”, conta.
Cases recentes que exemplificam a atuação da divisão de business development da Sony são o Ibis Music, feito em parceria com o Grupo AccorHotels, e o TIM Music by Deezer. A primeira iniciativa abrangeu 17 países, um concurso com 87 artistas independentes e 44 shows, e escolheu bandas para se apresentar num festival na Hungria. No Brasil, o artista Lucas Lucco foi o embaixador e orientador das bandas. A segunda, incluiu três shows da plataforma Filtr Live: um com Maria Gadu, Silva e Dani Black, outro com Pablo Vittar e Ludmilla, e uma roda de samba com Rodriguinho, Vou Pro Sereno e Bom Gosto. Já para a Mercedes-Benz, produziu, em parceria com a Netza, o Mercedes-Benz Night 2018, que contou com show da dinamarquesa MØ. Para a abertura da flagship da Calvin Klein, por sua vez, levou o Evokins, dupla de DJs formada por Thiago Cymbal e Wagner Farias.
O suporte de um conglomerado de comunicação por trás também tem se mostrado um trunfo no caso da Som Livre. “Ser parte do Grupo Globo nos permite diversificar, arriscar na busca de negócios, como festivais, eventos, shows, agenciamento e até mesmo atender às marcas de forma diferenciada na relação artística. Temos uma capacidade de projeção e conseguimos construir grandes marcas”, diz Alexandre Wesley, diretor de shows, festivais e relacionamento com marcas da Som Livre.
Do ponto de vista dos artistas, os cases de sucesso de nomes como Ivete Sangalo e Anitta, sempre no radar e nas estratégias de marketing das marcas, serviram de estímulo. “A grande mudança dos artistas com a divisão Music & Brands é que eles se engajaram mais com o fato de grandes marcas olharem a música como pilar de comunicação e de conexão com seus consumidores. Tudo na vida precisa de case e a Ivete é um grande case de marca. Toda hora está fazendo uma grande campanha. A Anitta igual”, ressalta Paulo Lima, da Universal Music.
O projeto da gravadora para a TIM também é apontado pelo executivo como um case que chamou a atenção. A empresa criou a plataforma TIM Music, em 2017, e selecionou 15 artistas que participaram da ação de várias formas, desde pocket show do Tiago Iorc num evento vip, a um grande evento popular no Rio de Janeiro com 12 mil pessoas e apresentações de Matheus e Kauan, Simone, Kevinho e Alok, até a transmissão ao vivo pela internet de um show de Anavitória. O projeto contou, ainda, com a criação de duas músicas para as campanhas da operadora, uma de Simone & Simaria, e outra de Matheus e Kauan.
A ativação de Bauducco na turnê Nossa História, de celebração dos 30 anos da dupla Sandy & Junior, que envolveu promoção para a distribuição de ingressos e ações durante os shows, é mais um case citado por Lima. Outro modelo de projeto é o Bradesco Music, plataforma criada em 2015 e que oferece serviço de streaming para os clientes dos cartões de crédito do banco. A iniciativa já realizou ações pontuais como levar fãs para ver show da banda Marron 5, nos Estados Unidos, e da Imagine Dragons, na Itália, ou para jantar com a Ivete Sangalo, em Salvador.
Já no portfólio de projetos da Som Livre estão o Festeja, que desde a sua estreia, em 2012, passou por mais de 35 cidades e soma mais de cem edições, inclusive fora do Brasil, e neste ano está sendo apresentado pela cerveja Itaipava; o Glacial Fest, festival itinerante patrocinado pela cerveja do Grupo Heineken; a Arena Pop, camarote na Arena Corinthians com operação da gravadora; além de shows mais intimistas como o projeto Churrasco do Teló (que teve patrocínio de JBS e Eisenbahn), o Deezer Sessions com Raça Negra e a turnê Amigos 20 Anos – A História Continua, com Chitãozinho & Xororó, Leonardo, e Zezé Di Camargo & Luciano.
Além da música
No vídeo que compõe essa reportagem especial, Paulo Lima, da Universal Music, analisa como produtos físicos, além dos discos, como artigos de moda, decoração e acessórios, têm engajado os fãs dos artistas e representado uma nova fonte de receita. Veja em http://bit.ly/2Uf6Gfi
Para 2019, a Som Livre projeta que essa frente de negócios represente de 10% a 15% do faturamento da companhia como um todo, percentual que pode ser elevado no futuro. No momento, a empresa está definindo os parceiros e os projetos do seu portfólio previstos para 2020. “As marcas buscam referências com capacidade de lidar com artistas de gêneros e tamanhos diferentes. Isso vai evoluir cada vez mais”, afirma Alexandre Wesley.
JOGO RÁPIDO
Crescimento pelo acesso ilimitadoDepois de dois anos em queda (1,7%, em 2015, e 3%, em 2016), o mercado fonográfico brasileiro registrou dois anos seguidos de crescimento (17,9%, em 2017, e 15,4%, em 2018), com índices acima da média mundial. Para Paulo Rosa, presidente da Pro-Música Brasil, o modelo de subscrições dos serviços de streaming, que oferece ao consumidor acesso irrestrito a uma quantidade quase que ilimitada de conteúdo musical, contribuiu para a reinvenção do setor após anos competindo com a gratuidade de acesso à música, majoritariamente por meios ilegais.
Meio & Mensagem — A indústria da música talvez tenha sido a primeira a sofrer o impacto do digital, com a queda nas vendas dos produtos físicos. O mercado voltou a crescer impulsionado pelos serviços de streaming. Como foi essa transição de modelo de vendas físicas para digital? Houve um marco desta nova fase?
Paulo Rosa — A transição se deu em meio a um cenário de queda acentuada nas vendas físicas de CDs em praticamente todo o mundo, motivado tanto pelo rápido desenvolvimento de novos hábitos e possibilidades de consumo de conteúdos culturais no mundo digital, quanto pela pirataria na própria internet e, cumulativamente no caso do Brasil e de toda a América Latina, vendas massivas no comércio informal e popular de CDs e DVDs musicais piratas. Nesse contexto, não foi fácil ou simples para o setor encontrar os melhores caminhos e modelos para se reinventar. A venda de downloads foi um bom primeiro passo, sendo que o lançamento do iPod e da loja iTunes, ambos da Apple, pode ser considerado um marco nesta transição para o digital. A partir da consolidação do streaming de músicas e vídeos musicais remunerado por publicidade, mas, principalmente, por receitas advindas de subscrições ou assinaturas mensais, este formato de negócio passou a ser dominante na distribuição de conteúdo musical em quase todo o mundo. Se considerarmos apenas as receitas fonográficas digitais e de vendas físicas no mercado brasileiro, o digital representa impressionantes 98%.M&M — Qual foi a importância da consolidação do modelo de negócios dos serviços de streaming para a retomada da indústria fonográfica?
Paulo — Competir com a gratuidade de acesso a música, majoritariamente por meios ilegais, era o grande desafio. Se, por um lado, o modelo de downloads ainda continha desafios para o setor neste particular, o streaming com suas subscrições mensais, acima de tudo, trouxe para o consumidor acesso irrestrito a uma quantidade quase que ilimitada de conteúdo musical, novas funcionalidades que cativaram rapidamente o público no mundo todo e preço acessível para encarar a pirataria online. Acontece fenômeno similar com o setor de audiovisual (cinema e TV).M&M — Quais outras áreas de negócio estão contribuindo para o desenvolvimento da indústria fonográfica no Brasil?
Paulo — Os direitos de execução pública arrecadados pelo Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), que apesar de apresentarem algumas pequenas oscilações nos últimos três anos, são parte importante do que arrecada o total do mercado fonográfico (14% no mundo e 27% no Brasil). A propósito, o Brasil é o sétimo País que mais arrecada direitos conexos (produtores e intérpretes) de execução pública, no mundo.M&M — A entidade trocou de nome em 2016. Qual foi a motivação? O que mudou no escopo de atuação?
Paulo — Não mudou nada no escopo de nossa atuação. A mudança no nome se deu em razão de não sermos mais produtores de discos como em passado distante. O novo nome foi inspirado em nossa congênere espanhola (ProMúsicaE) e no site do IFPI (a que somos afiliados) que divulga e promove os sites e plataformas licenciados para distribuição de música no mundo.